27/01/09

Ser amado a meio tempo

Crónica publicada por NP em Março/2006 na revista MAIS ALENTEJO
Lá fora a natureza carpia com força. Não se via ninguém, estava um cenário húmido, umbroso. Algumas gotas pesadas mas cristalinas deslizavam lentamente pelos vidros da janela, abraçando-se de quando em vez, com gaivotas, uma brisa gélida e um céu cinzento imenso como pano de fundo, enquanto o pequeno Diogo – uma criança de nove anos de olhar triste – fitava um gato encolhido junto do motor ainda quente de um quatro cavalos. Neste compasso hipnotizante, surgiu um relâmpago para lá do infinito que fez estremecer o nosso pequeno protagonista para cima da cama. Ficou imóvel alguns segundos, a escutar o som da chuva e a olhar para os brinquedos espalhados pelo quarto, até ouvir uma voz conhecida no rés-do-chão: “Estás pronto Diogo? O teu pai deve estar a chegar, desce para lanchares.” Foi mais uma tarde que terminou ao lado da mãe e agora um novo dia vai começar com o pai. Este ritual não é novo – pelo contrário – e o nosso jovem já o conhece há alguns anos, altura em que os pais colocaram um ponto final num casamento que foi uma desilusão anunciada ao fim dos primeiros anos de uma vida que foi tudo menos um projecto vivido a dois. Para o pequeno Diogo foi um período que começou a ser difícil quando percebeu que o seu herói já não dormia em casa nem lhe “dava os bons-dias”, com telefonemas a meio da noite, lágrimas, gritos e tribunais à mistura. Mas agora é tudo diferente porque os pais explicaram-lhe que existiam novas regras: há três anos atrás pediram ajuda a um homem para que lhes dessem umas folhas a dizer quando é que ele podia ficar com o pai ou com a mãe. E as novas regras, escritas num papel com o título regulação do exercício do poder paternal, são as seguintes: o Diogo fica entregue à guarda da mãe mas o poder paternal será exercido por ambos os pais. O pai poderá ver o filho e estar com ele sem prejuízo da saúde, horário de descanso e actividades escolares do menor, podendo inclusive pernoitar na casa daquele, quando este se encontrar de folga do serviço, por períodos não superiores a quarenta e oito horas semanais, mas para isso deve avisar a mãe com vinte e quatro horas de antecedência. Contudo, em casos pontuais, o pai poderá ter consigo o menor e com ele pernoitar períodos além dos referidos anteriormente. O pequeno Diogo passará os fins-de-semana alternados em casa do pai, indo este buscá-lo a casa da mãe às 19h00 de sexta-feira e levá-lo a casa desta às 19h00 de Domingo, ou vice-versa. O menor passará, alternadamente, com cada um dos pais, os dias 24 de Dezembro e 25 de Dezembro (Natal), o dia 31 de Dezembro e 1 de Janeiro (passagem de ano); terça-feira de Carnaval, Domingo de Páscoa e dia de aniversário, ficando com o pai no primeiro dia após a sentença judicial, que é como quem diz, após o “homem-corvo” decidir como vai passar a ser a vida da criança, já que os pais não conseguiram um consenso amigável. Nem pelo filho. Mas continuando a explicação: o menor passará com a mãe o Dia da Mãe e o aniversário da Mãe e com o pai o Dia do Pai e o dia de aniversário do pai. O pai poderá ter consigo o filho quinze dias no período de férias, devendo informar a mãe com pelo menos um mês de antecedência. O pai pagará uma pensão mensal para o filho, quantia que enviará à mãe até ao dia quinze de cada mês a que respeita, por cheque, depósito ou transferência bancária. Depois de todos estes considerandos difíceis de entender, o pequeno Diogo, com os olhos encharcados, enfiado entre as almofadas de um largo sofá, com os cabelos desalinhados e a camisa fora das calças, olhou de soslaio para os pais e dirigiu-lhes uma pergunta carregada de uma profunda ingenuidade própria da idade: “como é que faço se quiser estar um bocadinho com os dois ao mesmo tempo?” Ao que o pai respondeu prontamente: “isso já não será possível meu filho. Daqui em diante, vais ter que passar o teu tempo com um de cada vez”. Mas o Diogo, absorvido por um choro soluçante e imparável, mas sem estar rendido, ergueu a face, limpou os seus olhos de criança e voltou a perguntar: “e se eu pedir muito ao senhor que escreveu esse papel?”.